Por Adelson Vidal Alves
No importante ano de 1922, era
fundado no Brasil o PCB (Partido Comunista do Brasil). Tratava-se de um esforço
de ingressar no debate político mundial, marcado por uma revolução “proletária”
dentro de um grande país com estruturas semi-coloniais, e com uma classe
operária em lento desenvolvimento. Sem podermos contar com um partido
socialista, a versão brasileira de um partido revolucionário e comunista nasceu
no seio anarquista, movimento hegemônico entre os trabalhadores durante o final
do século XIX e início do XX. No dia de fundação do partido, os 9 fundadores
entoaram em voz baixa a internacional comunista, a fim de não acordar a tia de
Astrojildo Pereira, dona da casa onde se
realizou o congresso fundador.
A precariedade dos primeiros
passos do PCB não se resumia as questões materiais, mas, sobretudo, teóricas. Os
fundamentos de ação dos primeiros comunistas brasileiros vinham dos reflexos da
revolução russa, e tinha pouca influência da teoria marxista em sua riqueza
natural. Mesmo os intelectuais mais destacados, como o próprio Astrojildo,
tiveram enormes dificuldades para adaptar o parco conhecimento do método de
Marx a realidade brasileira. O mais ousado entre eles, Octávio Brandão,
arriscou uma mal sucedida empreitada em seu trabalho “agrarismo e industrialismo”, onde ainda que tenha trazido elementos
interessantes, apenas comprovava a baixa intimidade de nossos primeiros
comunistas com a teoria marxista.
A
debilidade de nosso marxismo em seus passos iniciais marcou decisões
equivocadas e até mesmo trágicas. Impossível não lembrar a
bizarra tentativa de revolução em 1935, derrotada em poucos dias, e que serviu
de argumento para o aprofundamento do regime ditatorial varguista, inaugurado
em 1937 no que veio a ser conhecido como Estado novo. Neste episódio, um dos
representantes do partido na III Internacional chegou a relatar que o Brasil
vivia uma situação revolucionária, com apoio popular que ia de operários aos cangaceiros
de lampião.
A trajetória
do PCB, contudo, marcou com competência o desenvolvimento cultural brasileiro, conseguiu
interferir nas decisões do movimento operário, e dentro de vários e longos
períodos de clandestinidade, mostrou capacidade de renovação, ainda que
oscilando entre sectarismos. Fato emblemático foi a declaração de Março de
1958, do qual se fez presente uma correta mudança de concepção da luta
política. Saltava-se para uma estratégia alinhada com a democracia política,
sem perspectivas insurrecionais. Motivo pelo qual uma parte de seus militantes
optou por abandonar a legenda, acusando a de “revisionista’ e “reformista”. A
fim de se manterem “revolucionários”, gente como Pedro Pomar, João Amazonas e Mauricio
Grabois, fundaram em 1962 o PCdoB, de orientação maoísta. A nova legenda esteve
entre aqueles que não viam outro caminho de resistência a ditadura senão pela
ação armada. Seus militantes, cerca de 70, se posicionaram ao longo do Rio Araguaia,
e foram abatidos com certa facilidade, comprovando o erro da estratégia, ainda
que tenhamos que reconhecer a bravura dos que tombaram. Encerro aqui as colocações
introdutórias deste artigo, relativamente longas, que objetivaram mostrar a acertada
afirmação leninista quanto a necessária relação dialética entre teoria e
prática.
Ponto
importante na vida do PCB, e agora entro definitivamente na temática central do
artigo, foi o acolhimento de um importante teórico em nosso celeiro
intelectual. Trata-se de Antônio Gramsci. A recepção das obras do autor se deu entre
os intelectuais ligados ao PCB, entre as décadas de 60 e final de 70. Ao
desembarcar no Brasil, Gramsci recebeu modesta recepção, suas primeiras
introduções viraram peças de sebo. O pouco interesse pela leitura de seu
marxismo herético, (resumido erroneamente por muitos como de interesse exclusivo
da cultura e não como ferramenta política para as revoluções no ocidente), foi
resultado ou causa das estratégias de confronto aberto assumido por nossas
esquerdas, que preferiram Marcuse ao pensador sardo. Somente mais tarde, quando
a ditadura militar dava sinais de esgotamento, que Gramsci entrou
definitivamente entre nós, que verdadeiramente se tornou um ilustre cidadão
brasileiro entre as esquerdas. Devemos muito a Carlos Nelson Coutinho, Luiz
Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira, Ênio Silveira e outros, a chegada
definitiva do maior clássico comunista do século XX, capaz de renovar o
marxismo brasileiro, antes seduzido pela vulgata soviética e seus pares. As categorias
gramscianas caíram como enriquecedoras das nossas produções
teórico-revolucionárias. Conseguimos, ainda que modestamente, fortalecer uma
esquerda democrática que, com visível influência gramsciana, abandonou por
completo perspectivas de insurreição aberta contra o Estado em suas ambições de
poder. Temos hoje um núcleo democrático forte, que atua na esteira do estado de
direito, obediente a carta republicana e com compromisso inegociável na defesa
da democracia e suas regras, entendida como valor universal, e não simplesmente
uma ferramenta burguesa contra as classes subalternas.
Gramsci
está entre nós, e é impossível ignorá-lo. Seu amplo leque conceitual ajudou em
nossas analises nacionais, trazendo luz sobre o processo de ocidentalização, decifrando
ainda, as bases estruturais de nossa modernização conservadora. O país das “revoluções
passivas” pode se conhecer melhor, intermediado por intervenções competentes de
analistas graúdos como o já citado Carlos Nelson Coutinho, Alberto Aggio e o
brilhante sociólogo Luiz Werneck Vianna.
Na
política, o marxista italiano passeia com liberdade em várias agremiações partidárias. Seus conceitos tem grande peso no PPS, influência relativa em parte
do PT e PSOL, chegando até mesmo a ser citado em documentos do PSTU. A
abrangência de suas avaliações carcerárias impede que se rejeite Gramsci, principalmente
em abordagens sobre educação, filosofia e literatura. Contribuição valorosa,
porém, vem de sua teoria política, desenvolvida em obra de maturidade, escrita
sob as duras condições da prisão fascista. De passagem, devemos lembrar que dos
apontamentos carcerários de Gramsci nasceu sua principal contribuição política
para as esquerdas ocidentais. Escritos fragmentados, sobreviveram em cadernos
de capa dura e nos chegaram até hoje sob cumplicidade de sua empenhada cunhada Tatiana,
e pela edição de Palmiro Togliatti e
Valentino Gerratana, editores temáticos e críticos da obra gramsciana. Nosso
autor foi capaz de resolver cativo, as aflições de uma esquerda que ainda não
entendia o fracasso da revolução socialista no ocidente do mundo. Veio dele a
brilhante constatação de que assaltar o poder estatal só faz sentido na medida
em que este “era tudo” e a “sociedade civil primitiva e gelatinosa”. Nas
realidades onde o poder se esparramava por uma sociedade civil plural e forte,
a decisão do processo revolucionário caminhava em busca de uma hegemonia civil,
travada por dentro dos “aparelhos privados de hegemonia’ numa intensa busca de
direção cultural.
A
afirmativa de que revoluções no ocidente só se processam em longas e graduais
lutas de posição, contaminou os setores da esquerda mais avançada do Brasil,
que prontamente elegeu a democracia como palco de mudanças estruturais. Esta
esquerda desabona tomar o “Palácio de Inverno” e não incita ações diretas pelo
poder, antes optam por “fazer política”, construir amplas alianças, avançar e
recuar na “guerra de posição”, e tem como convicção inabalável que a construção
de outra ordem social exige mais que simplificadas ações militares.
A
permanência fixa de Gramsci em nosso país é um remédio vital contra os desvios
sectários que povoam a história nacional. Ainda que teime em sobreviver os
adeptos da “guerra de manobra”, a persistência gramsciana foi mais que
suficiente pra fazer nascer entre nós uma sólida e perspicaz força política,
que marxista ou não, toma a democracia como valor de civilização, palco pelo
qual se desenha constantemente o processo de humanização de nossa vida social. E isto não é pouco.