sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Gramsci entre nós



Por Adelson Vidal Alves


                                  

No importante ano de 1922, era fundado no Brasil o PCB (Partido Comunista do Brasil). Tratava-se de um esforço de ingressar no debate político mundial, marcado por uma revolução “proletária” dentro de um grande país com estruturas semi-coloniais, e com uma classe operária em lento desenvolvimento. Sem podermos contar com um partido socialista, a versão brasileira de um partido revolucionário e comunista nasceu no seio anarquista, movimento hegemônico entre os trabalhadores durante o final do século XIX e início do XX. No dia de fundação do partido, os 9 fundadores entoaram em voz baixa a internacional comunista, a fim de não acordar a tia de Astrojildo Pereira,  dona da casa onde se realizou o congresso fundador.

A precariedade dos primeiros passos do PCB não se resumia as questões materiais, mas, sobretudo, teóricas. Os fundamentos de ação dos primeiros comunistas brasileiros vinham dos reflexos da revolução russa, e tinha pouca influência da teoria marxista em sua riqueza natural. Mesmo os intelectuais mais destacados, como o próprio Astrojildo, tiveram enormes dificuldades para adaptar o parco conhecimento do método de Marx a realidade brasileira. O mais ousado entre eles, Octávio Brandão, arriscou uma mal sucedida empreitada em seu trabalho “agrarismo e industrialismo”, onde ainda que tenha trazido elementos interessantes, apenas comprovava a baixa intimidade de nossos primeiros comunistas com a teoria marxista.

A debilidade de nosso marxismo em seus passos iniciais marcou decisões equivocadas e até mesmo trágicas. Impossível não lembrar a bizarra tentativa de revolução em 1935, derrotada em poucos dias, e que serviu de argumento para o aprofundamento do regime ditatorial varguista, inaugurado em 1937 no que veio a ser conhecido como Estado novo. Neste episódio, um dos representantes do partido na III Internacional chegou a relatar que o Brasil vivia uma situação revolucionária, com apoio popular que ia de operários aos cangaceiros de lampião.

A trajetória do PCB, contudo, marcou com competência o desenvolvimento cultural brasileiro, conseguiu interferir nas decisões do movimento operário, e dentro de vários e longos períodos de clandestinidade, mostrou capacidade de renovação, ainda que oscilando entre sectarismos. Fato emblemático foi a declaração de Março de 1958, do qual se fez presente uma correta mudança de concepção da luta política. Saltava-se para uma estratégia alinhada com a democracia política, sem perspectivas insurrecionais. Motivo pelo qual uma parte de seus militantes optou por abandonar a legenda, acusando a de “revisionista’ e “reformista”. A fim de se manterem “revolucionários”, gente como Pedro Pomar, João Amazonas e Mauricio Grabois, fundaram em 1962 o PCdoB, de orientação maoísta. A nova legenda esteve entre aqueles que não viam outro caminho de resistência a ditadura senão pela ação armada. Seus militantes, cerca de 70, se posicionaram ao longo do Rio Araguaia, e foram abatidos com certa facilidade, comprovando o erro da estratégia, ainda que tenhamos que reconhecer a bravura dos que tombaram. Encerro aqui as colocações introdutórias deste artigo, relativamente longas, que objetivaram mostrar a acertada afirmação leninista quanto a necessária relação dialética entre teoria e prática.

Ponto importante na vida do PCB, e agora entro definitivamente na temática central do artigo, foi o acolhimento de um importante teórico em nosso celeiro intelectual. Trata-se de Antônio Gramsci. A recepção das obras do autor se deu entre os intelectuais ligados ao PCB, entre as décadas de 60 e final de 70. Ao desembarcar no Brasil, Gramsci recebeu modesta recepção, suas primeiras introduções viraram peças de sebo. O pouco interesse pela leitura de seu marxismo herético, (resumido erroneamente por muitos como de interesse exclusivo da cultura e não como ferramenta política para as revoluções no ocidente), foi resultado ou causa das estratégias de confronto aberto assumido por nossas esquerdas, que preferiram Marcuse ao pensador sardo. Somente mais tarde, quando a ditadura militar dava sinais de esgotamento, que Gramsci entrou definitivamente entre nós, que verdadeiramente se tornou um ilustre cidadão brasileiro entre as esquerdas. Devemos muito a Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira, Ênio Silveira e outros, a chegada definitiva do maior clássico comunista do século XX, capaz de renovar o marxismo brasileiro, antes seduzido pela vulgata soviética e seus pares. As categorias gramscianas caíram como enriquecedoras das nossas produções teórico-revolucionárias. Conseguimos, ainda que modestamente, fortalecer uma esquerda democrática que, com visível influência gramsciana, abandonou por completo perspectivas de insurreição aberta contra o Estado em suas ambições de poder. Temos hoje um núcleo democrático forte, que atua na esteira do estado de direito, obediente a carta republicana e com compromisso inegociável na defesa da democracia e suas regras, entendida como valor universal, e não simplesmente uma ferramenta burguesa contra as classes subalternas.

Gramsci está entre nós, e é impossível ignorá-lo. Seu amplo leque conceitual ajudou em nossas analises nacionais, trazendo luz sobre o processo de ocidentalização, decifrando ainda, as bases estruturais de nossa modernização conservadora. O país das “revoluções passivas” pode se conhecer melhor, intermediado por intervenções competentes de analistas graúdos como o já citado Carlos Nelson Coutinho, Alberto Aggio e o brilhante sociólogo Luiz Werneck Vianna.

Na política, o marxista italiano passeia com liberdade em várias agremiações partidárias. Seus conceitos tem grande peso no PPS, influência relativa em parte do PT e PSOL, chegando até mesmo a ser citado em documentos do PSTU. A abrangência de suas avaliações carcerárias impede que se rejeite Gramsci, principalmente em abordagens sobre educação, filosofia e literatura. Contribuição valorosa, porém, vem de sua teoria política, desenvolvida em obra de maturidade, escrita sob as duras condições da prisão fascista. De passagem, devemos lembrar que dos apontamentos carcerários de Gramsci nasceu sua principal contribuição política para as esquerdas ocidentais. Escritos fragmentados, sobreviveram em cadernos de capa dura e nos chegaram até hoje sob cumplicidade de sua empenhada cunhada Tatiana,  e pela edição de Palmiro Togliatti e Valentino Gerratana, editores temáticos e críticos da obra gramsciana. Nosso autor foi capaz de resolver cativo, as aflições de uma esquerda que ainda não entendia o fracasso da revolução socialista no ocidente do mundo. Veio dele a brilhante constatação de que assaltar o poder estatal só faz sentido na medida em que este “era tudo” e a “sociedade civil primitiva e gelatinosa”. Nas realidades onde o poder se esparramava por uma sociedade civil plural e forte, a decisão do processo revolucionário caminhava em busca de uma hegemonia civil, travada por dentro dos “aparelhos privados de hegemonia’ numa intensa busca de direção cultural.

A afirmativa de que revoluções no ocidente só se processam em longas e graduais lutas de posição, contaminou os setores da esquerda mais avançada do Brasil, que prontamente elegeu a democracia como palco de mudanças estruturais. Esta esquerda desabona tomar o “Palácio de Inverno” e não incita ações diretas pelo poder, antes optam por “fazer política”, construir amplas alianças, avançar e recuar na “guerra de posição”, e tem como convicção inabalável que a construção de outra ordem social exige mais que simplificadas ações militares.

A permanência fixa de Gramsci em nosso país é um remédio vital contra os desvios sectários que povoam a história nacional. Ainda que teime em sobreviver os adeptos da “guerra de manobra”, a persistência gramsciana foi mais que suficiente pra fazer nascer entre nós uma sólida e perspicaz força política, que marxista ou não, toma a democracia como valor de civilização, palco pelo qual se desenha constantemente o processo de humanização de nossa vida social.  E isto não é pouco.

 

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