segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A questão do Estado

Por Adelson Vidal Alves



As crises costumam trazer a tona o debate quanto ao papel e a natureza do Estado. Nestes momentos, até mesmo os advogados do livre mercado e do Estado mínimo, recorrem a ele como forma de primeiro bote salva-vidas. Mas afinal, o que é o Estado? Qual sua natureza? Precisamos dele? Podemos sonhar com um mundo sem Estado?

Durante a história, vários pensadores teorizaram sobre o Estado. Thomas Hobbes, teórico do absolutismo da Idade moderna, tratava o poder estatal como regulador necessário a uma natureza humana egoísta pronta a eliminar uns aos outros. Em sua obra clássica “o Leviatã”, este Estado é fruto de um pacto que elimina liberdades individuais, entregue a um soberano com funções rígidas de controle e intervenção.

Para Hegel, o Estado é visto como a plenitude do desenvolvimento espiritual. A síntese final de um desenvolvimento histórico guiado por Deus. No Estado repousaria a organização absoluta da vida universal. Em Marx, ele é a organização de poder que se estabelece a partir das bases materiais de produção de uma determinada sociedade. Ele existiria em função da dominação de uma classe sobre outra, sendo a expressão política da opressão de um grupo sobre outro, o que fez Marx projetar uma sociedade livre tendo como condição o fenecimento do Estado.

Os dois primeiros pensadores tem no Estado uma instituição permanente, enquanto Marx condiciona a emancipação humana ao desaparecimento deste poder político. Os marxistas, então, tem um olhar negativo sobre a política, e defendem uma revolução social que seja capaz de criar um mundo de “autogoverno”. A história, no entanto, nunca se aproximou de algo neste sentido. Mesmos nos regimes que se reivindicaram inspirados em Marx, o Estado aumentou de tamanho, ao invés de diminuir, como propunha o filósofo alemão. Só que, ao contrário do que os marxistas ortodoxos imaginavam, o Estado não aumentou em autoritarismo, mas seguiu, nas sociedades ocidentais, um caminho democratizante, a ponto de se abrirem às conquistas das classes subalternas. Ele já não é mais o “comitê executivo das classes dominantes”.

As forças democráticas, em geral, estão convencidas da impossibilidade de se avançar caminhos civilizatórios por atitudes que  violem a via institucional. Isto por que, o Estado democrático de direito amadureceu pela ação direta de variados atores sociais, sobretudo, os grupos de baixo. O caminho para uma transformação social só é aceita pela via do reformismo, capaz de alterar o jogo de forças e de forma gradual estabelecer uma nova cultura de vivência, o que por sua vez forçará a renovação, ou até a abolição e criação de novas instituições.

A direita precisa de um Estado, ainda que restrito em suas funções. Mas a esquerda, que de alguma forma especula um mundo com mais liberdade, pode imaginar e sonhar com o fim do Estado. Mas esta possibilidade deve ser construída, com a ação cotidiana de democratização dos organismos modernos de Estado. Eles hoje estão abertos a criação de consensos pacíficos, formados pela luta e pelo debate de grupos socais inseridos no jogo democrático. Para usar as palavras de um dos principais documentos do Partido Comunista Italiano, deve se pensar a nova sociedade como uma “grande marcha por entre as instituições”, palavras estas que se contrapõem a estratégias como a do maoismo, que coloca a violência como via para o socialismo.

O debate deve seguir, mas o atual momento histórico exige a compreensão de que a evolução histórica ainda  necessita da existência de um Estado, aberto a pressões populares e com seu poder exercido de forma estendida a outros espaços da sociedade civil.



quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O mito Palmares

Por Adelson Vidal Alves

No ano de 1971, em Porto Alegre, uma organização negra, chamada Grupo Palmares, fez talvez a primeira comemoração do dia 20 de Novembro, data da morte de Zumbi, principal líder do maior quilombo da história brasileira. Zumbi foi capturado, morto e degolado no referido dia do ano de 1695, na região da Serra da Barriga, na capitania de Pernambuco, onde se localiza hoje o estado do Alagoas.  

Em 2003, no dia 9 de Janeiro, a lei 10.639 inclui o Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar, ao mesmo tempo em que obrigava o ensino da história e cultura afro-brasileira.

A exaltação e evolução da data como referência da cultura negra se sobrepôs ao 13 de maio, data da abolição da escravidão, que até então era tida como centro das reflexões do movimento negro organizado. Vista como uma “falsa abolição”, a data é criticada por celebrar uma libertação que não houve.

Na verdade, a abolição da escravidão é tida, historicamente, como fruto de um conjunto de fatores econômicos, políticos e sociais, que não envolveram apenas a resistência negra, mas também a solidariedade de brancos no movimento abolicionista, que ganhou o mundo e pressionou o único país independente da América a ainda adotar a escravidão a se livrar dela num ato legal. A consciência negra, do Dia 20 de novembro seria, assim,  celebração unicamente do povo negro, do protagonismo exclusivo em suas lutas. Trata-se da substituição de uma data anti-racialista, para uma data racialista.

Frente a data, o movimento negro mistifica um herói: Zumbi. Tratado como líder de um quilombo democrático e que combateu a escravidão. Ele é tido como uma figura mítica, e Palmares uma metáfora do paraíso negro, liberto da opressão branca.

Só que a história mostra Palmares de uma forma bem diferente. Ao contrário de uma sociedade igualitária, prevalecia uma organização estamental, com as lideranças do grupo gozando de privilégios. Bem diferente de combater a escravidão, Palmares se relacionava com colonizadores portugueses e mantinha escravidão no seu território, o próprio Zumbi teve escravos particulares. Zumbi mandava capturar escravos e mulheres, estas últimas eram executadas caso contrariassem a liderança do Quilombo.

No dia da Consciência Negra, será comemorado um Palmares que não existiu historicamente, mas que precisa existir nas mentes, a fim de atender os projetos de movimentos e ONGs racialistas.



quarta-feira, 11 de novembro de 2015

BNCC: o fim da temporalidade no ensino de história

Por Adelson Vidal Alves

March Bloch certa vez escreveu: “a história é a ciência do homem no tempo”. Já Fernand Braudel dizia que “O historiador nunca se evade do tempo da história”. Homens como eles, pensadores e cientistas da história, sabem muito bem que a temporalidade é algo precioso na vida do historiador, e de quebra, no ensino da história.

No entanto, tal compreensão vem faltando aos “especialistas” do MEC, que vem propondo uma reforma radical no conteúdo do ensino de história,  através da Base nacional Comum Curricular (BNCC) que em sua essência, vai abolir a noção de tempo histórico. Isto por que, com a desculpa de combater o eurocentrismo, os reformadores se propõem a abolir o sistema clássico francês de divisão da narrativa histórica (antiguidade, Idade média, Idade moderna e Idade contemporânea). No lugar, entraria o estudo de culturas e “mundos” próprios de alguns povos, sobreduto o dos “ameríndios” “africanos” e “afrobrasileiros”. O aluno mergulharia em compreensões de realidades culturais cercadas por muralhas étnicas, raciais e políticas. A história universal, moldada pelos feitos da tradição greco-romana, da Renascença, do cristianismo da Idade Média, da Reforma protestante, das revoluções liberais na Europa, simplesmente desapareceria dos livros de História. No lugar, a total subserviência ao multiculturalismo, sempre disposto a fragmentar.

Tamanho absurdo recebeu críticas até mesmo do ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro. Em Outubro, Janine fez suas primeiras críticas, citando a ausência do ensino da Inconfidência Mineira, rebelião colonial que nos legou a figura de Tiradentes. Vejam só! Teríamos um herói nacional, com feriado e tudo, sem sequer ser citado nos currículos de história. Neste caso, faria todo o sentido um jovem questionar o feriado de 21 de abril, afinal “quem é Tiradentes?”.

Janine, que retardou a apresentação do BNCC de história, ainda, criticou o texto original que “ignorava quase por completo o que não fosse Brasil e África”. O ex ministro também alertou para o perigo de se “descambar para a ideologia”.

Enfim, o MEC se propõe a mutilar a História mundial, ignorar a temporalidade como elemento de construção da identidade histórica, e se concentrar nos estudos de realidades recortadas historicamente, retirando dos alunos o direito de compreenderem a totalidade, os processos de rupturas e permanências que construíram a história do mundo. Um verdadeiro desastre. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Sartre, Beauvoir e o jornalista apressado

Por Adelson Vidal Alves


O jornalista Aurélio Paiva, dono de um jornal de grande circulação no Sul fluminense carioca, publicou audacioso artigo em que diz que a escritora Simone Beauvoir e o filósofo Jean Paul Sartre seriam defensores de pedófilos, assim como praticantes de uma vida sexual que tratava as mulheres como objeto.

Aurélio recolhe suas informações básicas do livro “Uma relação perigosa” da historiadora escocesa Carole Saymour-Jones. Para sustentar sua narrativa, o autor se apega, ainda, em cartas póstumas de Beauvoir, assim como artigos e manifestos publicados pelo casal de intelectuais.

No entanto, algumas questões sérias foram colocadas sem a devida cautela que se exige de quem escreve um texto público, ainda mais contendo rotulações e acusações tão graves. Deve-se, também, compreender que a história não é feita por revelações mágicas  vindas de fontes solitárias que atestariam uma “verdade, pelo contrário, a história é fruto de um trabalho interpretativo do historiador, que se realiza a partir das fontes, e apesar da sua objetividade científica, ele sempre fala a partir de algum lugar. Sendo assim, tomar uma única obra com pequenos segmentos descontextualizados não é a melhor maneira de se contar a vida de uma pessoa.

Mas vamos ao artigo, intitulado “mulheres-objeto de Sarte e Simone de Beauvoir”. De início, destaco o cuidado de Aurélio a reconhecer que não há documentado qualquer caso de pedofilia envolvendo Sartre ou Beauvoir. Sim, eles tiveram relações sexuais com jovens de 16 e 17 anos, mas sempre com as suas devidas concessões. Para associar o casal à pedofilia, Aurélio teve que recuperar um manifesto assinado por ambos, onde se fazia a defesa da diminuição da idade de concessão sexual, na França daquele tempo, a idade era de 15 anos. 

É de se lembrar que Beauvoir sempre se posicionou pela emancipação de jovens como protagonistas de sua vida sexual, deixando de serem vítimas indefesas. Se isso é certo ou não, a história é outra, mas isso não significa que eles sejam pedófilos, assinaram um documento propondo a mudança de uma lei (quem assina um manifesto pedindo a legalização da maconha não é necessariamente maconheiro). É oportuno registrar que não foram apenas Sartre e Beauvoir que assinaram a petição, nomes de intelectuais de peso, como Deleuze e Foucault, também assinaram.

No artigo ainda há pequenas menções sobre, no mínimo, um silêncio dos dois em relação ao nazismo, ainda que não se repita o absurdo propagandeado de que Beauvoir era ativa colaboradora da doutrina nacional-socialista. Aurélio Paiva cita o episódio quando Simone de Beauvoir trabalhou na Rádio AVFM, controlada por nazistas. Por lhe faltar o sotaque de historiador, talvez tenha faltado a Aurélio compreender a realidade ambígua da França ocupada, o mesmo erro que muitos cometeram ao taxar de nazista o papa emérito Bento XVI, por este um dia ter sido membro da juventude nazista.

Muitos pesquisadores, como Ingrid Galster, professora de literatura alemã e estudiosa da vida de Beauvoir, garantem, depois de estudar os discursos de Beauvoir na rádio,  que não há nenhuma evidência que a escritora tenha se envolvido com o nazismo, diferente do filósofo Martin Heidegger. A posição é acompanhada pela professora de Harward, Susan Sulelman que garante não haver nenhuma prova contundente de alguma aproximação de Simone com a ideologia nazista.


Sobre Beauvoir e Sartre, sabemos que tiveram um relacionamento duradouro e livre. Não se trata de uma união aos moldes cristãos, mas acordado entre as partes, firmado sob convicções de amor e liberdade. Se erraram ao praticar algo que condenaram, isto está longe de denegrir suas imagens, construídas sob suas competências intelectuais e militantes. Estes dois pensadores contribuíram e muito para a evolução do pensamento ocidental, e nada mais infeliz que um jornalista apressado tentando desconstruir o que há séculos testemunha a história da filosofia. Há de se ter cuidado, não só para não manchar a índole de pessoas, mas, principalmente, para não deseducar a opinião pública com informações mal colocadas, para um jornalista, trata-se de um erro grave. 

Link para se ler o artigo de Aurélio Paiva: http://diariodovale.com.br/colunas/mulheres-objeto-de-sartre-e-de-simone-de-beauvoir/