quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Sartre, Beauvoir e o jornalista apressado

Por Adelson Vidal Alves


O jornalista Aurélio Paiva, dono de um jornal de grande circulação no Sul fluminense carioca, publicou audacioso artigo em que diz que a escritora Simone Beauvoir e o filósofo Jean Paul Sartre seriam defensores de pedófilos, assim como praticantes de uma vida sexual que tratava as mulheres como objeto.

Aurélio recolhe suas informações básicas do livro “Uma relação perigosa” da historiadora escocesa Carole Saymour-Jones. Para sustentar sua narrativa, o autor se apega, ainda, em cartas póstumas de Beauvoir, assim como artigos e manifestos publicados pelo casal de intelectuais.

No entanto, algumas questões sérias foram colocadas sem a devida cautela que se exige de quem escreve um texto público, ainda mais contendo rotulações e acusações tão graves. Deve-se, também, compreender que a história não é feita por revelações mágicas  vindas de fontes solitárias que atestariam uma “verdade, pelo contrário, a história é fruto de um trabalho interpretativo do historiador, que se realiza a partir das fontes, e apesar da sua objetividade científica, ele sempre fala a partir de algum lugar. Sendo assim, tomar uma única obra com pequenos segmentos descontextualizados não é a melhor maneira de se contar a vida de uma pessoa.

Mas vamos ao artigo, intitulado “mulheres-objeto de Sarte e Simone de Beauvoir”. De início, destaco o cuidado de Aurélio a reconhecer que não há documentado qualquer caso de pedofilia envolvendo Sartre ou Beauvoir. Sim, eles tiveram relações sexuais com jovens de 16 e 17 anos, mas sempre com as suas devidas concessões. Para associar o casal à pedofilia, Aurélio teve que recuperar um manifesto assinado por ambos, onde se fazia a defesa da diminuição da idade de concessão sexual, na França daquele tempo, a idade era de 15 anos. 

É de se lembrar que Beauvoir sempre se posicionou pela emancipação de jovens como protagonistas de sua vida sexual, deixando de serem vítimas indefesas. Se isso é certo ou não, a história é outra, mas isso não significa que eles sejam pedófilos, assinaram um documento propondo a mudança de uma lei (quem assina um manifesto pedindo a legalização da maconha não é necessariamente maconheiro). É oportuno registrar que não foram apenas Sartre e Beauvoir que assinaram a petição, nomes de intelectuais de peso, como Deleuze e Foucault, também assinaram.

No artigo ainda há pequenas menções sobre, no mínimo, um silêncio dos dois em relação ao nazismo, ainda que não se repita o absurdo propagandeado de que Beauvoir era ativa colaboradora da doutrina nacional-socialista. Aurélio Paiva cita o episódio quando Simone de Beauvoir trabalhou na Rádio AVFM, controlada por nazistas. Por lhe faltar o sotaque de historiador, talvez tenha faltado a Aurélio compreender a realidade ambígua da França ocupada, o mesmo erro que muitos cometeram ao taxar de nazista o papa emérito Bento XVI, por este um dia ter sido membro da juventude nazista.

Muitos pesquisadores, como Ingrid Galster, professora de literatura alemã e estudiosa da vida de Beauvoir, garantem, depois de estudar os discursos de Beauvoir na rádio,  que não há nenhuma evidência que a escritora tenha se envolvido com o nazismo, diferente do filósofo Martin Heidegger. A posição é acompanhada pela professora de Harward, Susan Sulelman que garante não haver nenhuma prova contundente de alguma aproximação de Simone com a ideologia nazista.


Sobre Beauvoir e Sartre, sabemos que tiveram um relacionamento duradouro e livre. Não se trata de uma união aos moldes cristãos, mas acordado entre as partes, firmado sob convicções de amor e liberdade. Se erraram ao praticar algo que condenaram, isto está longe de denegrir suas imagens, construídas sob suas competências intelectuais e militantes. Estes dois pensadores contribuíram e muito para a evolução do pensamento ocidental, e nada mais infeliz que um jornalista apressado tentando desconstruir o que há séculos testemunha a história da filosofia. Há de se ter cuidado, não só para não manchar a índole de pessoas, mas, principalmente, para não deseducar a opinião pública com informações mal colocadas, para um jornalista, trata-se de um erro grave. 

Link para se ler o artigo de Aurélio Paiva: http://diariodovale.com.br/colunas/mulheres-objeto-de-sartre-e-de-simone-de-beauvoir/

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