quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Sobre raças e cotas raciais

Por Adelson Vidal Alves

O século XVIII assistiu ao apogeu de uma importante corrente de pensamento da modernidade: o iluminismo. Seus formuladores pretendiam jogar luz racional à cultura humana, tendo entre seus princípios a igualdade entre todos os homens. Estes nasceriam iguais e livres, segundo os pensadores iluministas.

Neste mesmo século, cientistas naturais trabalhavam nas primeiras tentativas de classificar a humanidade pelo paradigma da “raça”. O médico alemão Johann Friedrich Blumenbach foi um dos pioneiros. Para ele, os homens poderiam ser divididos nas raças caucasoide (branca), mongoloide (amarela), malaia (marrom), etiópica (negra) e americana (vermelha). Mais a frente seus colegas expandiram suas concepções raciais, chegando muitos deles a falar em 100 raças diferentes.

Entre uma concepção de igualdade humana do iluminismo e da divisão racial da espécie, discussões foram sendo travadas. Sob a divulgação do trabalho de Charles Darwin, A evolução das espécies (1859), cientistas argumentavam uma hierarquia entre as famílias raciais humanas. Algumas delas teriam vantagens intelectuais e morais sobre outras, que por sua vez se faziam refletir na vida cultural e social de cada uma delas. Consolidava-se aí o mito da raça.

Entretanto, ao contrário do que muitos pensam, este mito jamais foi usado como fator ideológico na escravidão negra. O modelo de escravização dos africanos funcionou sob um consenso que dispensava a necessidade de uma ideologia justificadora. Para se ter uma ideia, o abastecimento do mercado colonial não se dava em guerras de conquistas, como ficou caracterizada grande parte dos processos de escravização na história da humanidade. Bastaram-se negociações pacíficas entre colonizadores e reinos africanos. A “naturalidade” se estendia até mesmo às partes mais baixas da sociedade escravocrata. Escravos negros libertos tinham o hábito de acumular dinheiro para comprarem outro  escravo negro.

O mito racial, assim, só foi necessário na segunda metade do século XIX, no período que ficou marcado pelo imperialismo. As potencias imperiais se lançaram a exploração dos continentes africanos e asiáticos, tendo que convencer suas próprias opiniões públicas, construídas sob a evolução de uma imprensa relativamente complexa e moderna. Recorrer a “raça” era assim uma forma de justificar a dominação dos europeus sobre grupos “inferiores”. Não é a toa que tão logo os imperialistas colocavam o pé numa terra conquistada, procuravam classificar seus habitantes pela referência racial, organizada por intelectuais de vários campos, principalmente os antropólogos.

É aqui que nasce o racismo que conhecemos hoje. Ele foi fundado e desenvolvido por uma crença sólida de que os seres humanos dividiam-se em famílias raciais. Sem esta concepção hegemônica no imaginário social, jamais seria possível o êxito racista.

Foi preciso um avanço significativo das ciências naturais, sobretudo a genética, para que tenhamos conseguido desconstruir a ideologia racista. Hoje temos a certeza da existência de espécies monotípicas, isto é, compostas de uma raça só, como nós, os Homo Sapiens. Sabemos que a variedade física dos homens justifica-se por combinações biológicas que não nos permitem lotear grupos biológicos comuns. A cor da pele, fator que ainda hoje permite a muitos classificar racialmente populações inteiras, é tão somente fruto da exposição evolutiva à radiação ultravioleta, controlada no máximo por 10 genes dentro de um universo de mais de 25000.

Qualquer filosofia racista é insustentável em nosso tempo. A certeza de que entre humanos não existe raças cancela de vez qualquer pensamento que atribua superioridade intelectual de algum suposto grupo sobre outro. Mas o racismo persiste, podem dizer alguns. O fato é que as descobertas científicas ainda não conseguiram atingir em cheio nossa cultura, tendo que enfrentar obstáculos em ideologias que se movimentam no campo cultural e das políticas públicas.

Não é novidade para nós o esforço de setores organizados do movimento negro de tentarem obter reparações históricas a sua “raça”, utilizando-se de políticas públicas”. A mais famosa destas políticas são as cotas raciais, aprovadas recentemente no Brasil. Com ela, indivíduos que se assumem da “raça negra” podem se candidatar a vagas em universidades e serviços públicos, mantendo vantagens sobre os “não negros”. Este tipo de política foi importada dos EUA, um dos pioneiros em tais iniciativas. O Plano Filadélfia, do presidente Nixon, mudou o rosto do mercado de trabalho americano ao garantir cotas raciais em várias empresas do país. Se de fato a vida econômica dos negros melhorou, por outro lado a cultura americana permanece vivendo sob uma realidade segregacionista. E não podia ser diferente. Lembremos que após a abolição da escravidão negra os americanos aplicaram leis anti-miscigenação, que funcionavam sob o critério famoso da “gota de sangue único”, a saber, um método que consistia na retirada de uma gota de sangue que jamais poderia conter sequer 1% de descendência africana, senão a identidade branca do indivíduo logo se perdia.

O Brasil não apoiou leis raciais depois de sua abolição, negando a se construir a partir do Estado políticas anti-miscigenadoras. Isso, todavia, não impediu que o falso paradigma da raça penetrasse no aparato jurídico da nação. Ainda que sem Gota de sangue, nosso país seguiu a racialização de seu vizinho da América do Norte, e adota cada vez mais leis baseadas na cor da pele. Hoje várias Universidades brasileiras adotam cotas raciais, assim como em concursos públicos. Até um Estatuto racial aprovamos.

Com a impossibilidade de selecionar objetivamente a raça beneficiada pelas cotas, a nação brasileira vem se submetendo a autoridade de um tribunal que rotula racialmente pessoas a seu bel prazer. No processo de busca por uma vaga no ensino superior, já não basta a autodeclaração racial do candidato, faz-se obrigatório o carimbo dos doutores em raça.

Tudo isso soa igualmente trágico e cômico. Tínhamos tudo para fortalecermos nossa vocação democrática e republicana, com tolerância as diversidades, mas por escolha de nossos governantes, sob pressão de ONGs racialistas, voltamos a ser um país repartido pela cor da pele. Temos de volta as rivalidades raciais, as paranoias do cotidiano, o sentimento de separação. Não nos bastaram as conquistas da ciência a favor de uma humanidade só. Prevaleceu a vontade de uma elite racial, que não fez e não faz nenhum esforço para virarmos páginas tristes de nossa história. Em nome de uma “raça” eles pedem reparação, o Estado concede, e o Brasil permanece marcado pela dolorosa divisão de seu povo, mais preso a sua cor do que na unidade do chão em que se pisa.

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