O século XVIII assistiu ao
apogeu de uma importante corrente de pensamento da modernidade: o iluminismo.
Seus formuladores pretendiam jogar luz racional à cultura humana, tendo entre
seus princípios a igualdade entre todos os homens. Estes nasceriam iguais e
livres, segundo os pensadores iluministas.
Neste mesmo século, cientistas
naturais trabalhavam nas primeiras tentativas de classificar a humanidade pelo
paradigma da “raça”. O médico alemão Johann Friedrich Blumenbach foi um dos
pioneiros. Para ele, os homens poderiam ser divididos nas raças caucasoide
(branca), mongoloide (amarela), malaia (marrom), etiópica (negra) e americana
(vermelha). Mais a frente seus colegas expandiram suas concepções raciais,
chegando muitos deles a falar em 100 raças diferentes.
Entre uma concepção de
igualdade humana do iluminismo e da divisão racial da espécie, discussões foram
sendo travadas. Sob a divulgação do trabalho de Charles Darwin, A evolução das espécies (1859),
cientistas argumentavam uma hierarquia entre as famílias raciais humanas.
Algumas delas teriam vantagens intelectuais e morais sobre outras, que por sua
vez se faziam refletir na vida cultural e social de cada uma delas. Consolidava-se
aí o mito da raça.
Entretanto, ao contrário do que
muitos pensam, este mito jamais foi usado como fator ideológico na escravidão
negra. O modelo de escravização dos africanos funcionou sob um consenso que
dispensava a necessidade de uma ideologia justificadora. Para se ter uma ideia,
o abastecimento do mercado colonial não se dava em guerras de conquistas, como
ficou caracterizada grande parte dos processos de escravização na história da
humanidade. Bastaram-se negociações pacíficas entre colonizadores e reinos
africanos. A “naturalidade” se estendia até mesmo às partes mais baixas da
sociedade escravocrata. Escravos negros libertos tinham o hábito de acumular
dinheiro para comprarem outro escravo
negro.
O mito racial, assim, só foi
necessário na segunda metade do século XIX, no período que ficou marcado pelo
imperialismo. As potencias imperiais se lançaram a exploração dos continentes
africanos e asiáticos, tendo que convencer suas próprias opiniões públicas,
construídas sob a evolução de uma imprensa relativamente complexa e moderna. Recorrer
a “raça” era assim uma forma de justificar a dominação dos europeus sobre
grupos “inferiores”. Não é a toa que tão logo os imperialistas colocavam o pé
numa terra conquistada, procuravam classificar seus habitantes pela referência racial,
organizada por intelectuais de vários campos, principalmente os antropólogos.
É aqui que nasce o racismo que
conhecemos hoje. Ele foi fundado e desenvolvido por uma crença sólida de que os
seres humanos dividiam-se em famílias raciais. Sem esta concepção hegemônica no
imaginário social, jamais seria possível o êxito racista.
Foi preciso um avanço
significativo das ciências naturais, sobretudo a genética, para que tenhamos
conseguido desconstruir a ideologia racista. Hoje temos a certeza da existência
de espécies monotípicas, isto é, compostas de uma raça só, como nós, os Homo
Sapiens. Sabemos que a variedade física dos homens justifica-se por combinações
biológicas que não nos permitem lotear grupos biológicos comuns. A cor da pele,
fator que ainda hoje permite a muitos classificar racialmente populações
inteiras, é tão somente fruto da exposição evolutiva à radiação ultravioleta,
controlada no máximo por 10 genes dentro de um universo de mais de 25000.
Qualquer filosofia racista é
insustentável em nosso tempo. A certeza de que entre humanos não existe raças
cancela de vez qualquer pensamento que atribua superioridade intelectual de
algum suposto grupo sobre outro. Mas o racismo persiste, podem dizer alguns. O fato
é que as descobertas científicas ainda não conseguiram atingir em cheio nossa
cultura, tendo que enfrentar obstáculos em ideologias que se movimentam no
campo cultural e das políticas públicas.
Não é novidade para nós o
esforço de setores organizados do movimento negro de tentarem obter reparações
históricas a sua “raça”, utilizando-se de políticas públicas”. A mais famosa
destas políticas são as cotas raciais, aprovadas recentemente no Brasil. Com
ela, indivíduos que se assumem da “raça negra” podem se candidatar a vagas em
universidades e serviços públicos, mantendo vantagens sobre os “não negros”. Este
tipo de política foi importada dos EUA, um dos pioneiros em tais iniciativas. O
Plano Filadélfia, do presidente Nixon, mudou o rosto do mercado de trabalho
americano ao garantir cotas raciais em várias empresas do país. Se de fato a
vida econômica dos negros melhorou, por outro lado a cultura americana
permanece vivendo sob uma realidade segregacionista. E não podia ser diferente.
Lembremos que após a abolição da escravidão negra os americanos aplicaram leis
anti-miscigenação, que funcionavam sob o critério famoso da “gota de sangue
único”, a saber, um método que consistia na retirada de uma gota de sangue que
jamais poderia conter sequer 1% de descendência africana, senão a identidade
branca do indivíduo logo se perdia.
O Brasil não apoiou leis
raciais depois de sua abolição, negando a se construir a partir do Estado
políticas anti-miscigenadoras. Isso, todavia, não impediu que o falso paradigma
da raça penetrasse no aparato jurídico da nação. Ainda que sem Gota de sangue,
nosso país seguiu a racialização de seu vizinho da América do Norte, e adota
cada vez mais leis baseadas na cor da pele. Hoje várias Universidades
brasileiras adotam cotas raciais, assim como em concursos públicos. Até um
Estatuto racial aprovamos.
Com a impossibilidade de
selecionar objetivamente a raça beneficiada pelas cotas, a nação brasileira vem
se submetendo a autoridade de um tribunal que rotula racialmente pessoas a seu
bel prazer. No processo de busca por uma vaga no ensino superior, já não basta
a autodeclaração racial do candidato, faz-se obrigatório o carimbo dos doutores
em raça.
Tudo isso soa igualmente
trágico e cômico. Tínhamos tudo para fortalecermos nossa vocação democrática e
republicana, com tolerância as diversidades, mas por escolha de nossos
governantes, sob pressão de ONGs racialistas, voltamos a ser um país repartido
pela cor da pele. Temos de volta as rivalidades raciais, as paranoias do
cotidiano, o sentimento de separação. Não nos bastaram as conquistas da ciência
a favor de uma humanidade só. Prevaleceu a vontade de uma elite racial, que não
fez e não faz nenhum esforço para virarmos páginas tristes de nossa história.
Em nome de uma “raça” eles pedem reparação, o Estado concede, e o Brasil
permanece marcado pela dolorosa divisão de seu povo, mais preso a sua cor do
que na unidade do chão em que se pisa.
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