Por Adelson Vidal Alves
Em 1847, Marx e Engels escreveriam um curto, porém, valoroso documento, que entraria para a história como um dos mais importantes textos da idade moderna e contemporânea: o Manifesto Comunista. Os dois jovens alemães dariam aos trabalhadores, pressupostos científicos para a construção de uma nova sociedade, bem diferente daquelas que viviam, na qual sofriam pesadas jornadas de trabalho e exploração de sua força criativa. No manifesto, estavam claros os caminhos e os sujeitos sociais que deveriam construir os alicerces desta nova sociedade, a sociedade socialista, um novo ordenamento social onde não haveria alienação, exploração e desigualdade, tão presentes no capitalismo.
Nos seus escritos de juventude, Marx e Engels colocavam a queda do capitalismo como algo inevitável. As contradições do modo de produção do capital, o aparecimento de uma classe operária homogênea e ampla, assim como o empobrecimento das massas levariam, fatalmente, à derrota do capitalismo e à instalação da “ditadura do proletariado”, regime de Estado onde os trabalhadores tomam e controlam a máquina Estatal com o intuito de firmar mecanismos de transição para a sociedade comunista, momento no qual o Estado desaparece e com ele todas as contradições de uma ordem social dividida em classes.
Marx morreu e não chegou a ver suas ideias serem usadas como referência em um grande fato histórico, a Revolução Russa de 1917. Contrariando as previsões do próprio, um país atrasado e predominantemente camponês, a Rússia, se transformou, no início do século XX, no primeiro a reivindicar o status de socialista nos moldes teóricos do marxismo.
Tendo que enfrentar as dificuldades da revolução coube à um grande teórico russo, Vladimir Lênin, pensar e teorizar sobre a transição socialista numa realidade extremamente adversa.
O contexto socioeconômico, assim como a geopolítica mundial, foram elementos decisivos para que o líder bolchevique teorizasse os rumos do socialismo russo, tendo como característica central, a consolidação de um partido e um governo disciplinado e totalmente centralizado. Era a “ditadura do proletariado”.
O conceito marxista de “ditadura do proletariado” não está presente no Manifesto e foi pouco desenvolvido por Marx. Em Lênin, ele ganha traços fortes e literais, testemunhadas na famosa frase do pensador bolchevique “A ditadura do proletariado está acima de qualquer lei”.
Mesmo que de forma inconsciente, Lênin estabeleceria aí as bases de sustentação de um regime tirano que se iniciaria após sua morte, quando Stalin assume a direção da já então URSS. Mesmo que Lênin não seja Stalin (o próprio Lênin chegou a alertar em carta, antes de sua morte, o perigo de Stalin chegar ao poder!) seu pensamento, exposto mais abertamente em sua obra Que fazer, defendia restrições à democracia e à consolidação de organizações revolucionárias de corte militar e centralizada.
Da sua morte até 1953, a URSS, sob a ditadura Stalinista, ficou conhecida como um regime de terror, perseguição e cultos doentios à personalidade. Fala-se em mais de 10 milhões de camponeses mortos nos famosos planos quinquenais. O desprezo pela democracia seria mais tarde o principal fator de desintegração do bloco socialista soviético em 1991.
O debate teórico em meio à ditadura de Stalin, praticamente desapareceu com os expurgos do governo. Trotsky e sua oposição de esquerda faziam críticas duras à burocratização da revolução, mas tampouco propunham a democracia como ingrediente fundamental no êxito socialista. Coube ao comunista italiano, Antônio Gramsci, desenvolver um corpo teórico que, a partir de Marx e Lênin, enriquecia o ideário marxista e mostrava os caminhos para a construção de uma nova ordem social sob a perspectiva da democratização.
Em seus apontamentos carcerários, Gramsci, ainda que sem citações diretas, vai criticar duramente o regime de Stalin. Em uma nota dos cadernos intitulada “estatolatria”, o pensador sardo vai defender a construção de um socialismo a partir de bases consensuais. Argumentava assim, que a visão predominante de que o Estado, pela via unicamente coerciva, jamais seria capaz de concluir os caminhos para uma nova ordem social que superasse os ditames do capital.
Nesta mesma nota, Gramsci vai dizer que em paises com pouco ou nenhuma tradição democrática (como no caso da Rússia Czarista) um tempo de ditadura forte do Estado se torna necessário:
"Todavia, essa ‘estatolatria’ não deve ser deixada a seu livre curso, não deve, em particular, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como ‘perpétua’; deve ser criticada [a fim de que se crie] uma complexa e bem articulada sociedade civil, na qual o indivíduo singular se autogoverne" [1].
O posicionamento de Gramsci, exposto de forma clara numa carta de 1926, na qual o comunista italiano irá criticar a coletivização da agricultura e defender a NEP, como forma de obter consenso dos camponeses para o projeto da classe operária, tem a ver com sua teoria de “Estado ampliado”.
Superando Marx, Gramsci vai dizer que o Estado não é apenas o monopólio legal da violência por parte das classes dominantes, “O comitê executivo da burguesia” como descrito no Manifesto comunista. A partir de 1870, é observado a criação de uma ampla rede de movimentos sociais e organizações de livre associação, que vão se tornar a expressão de um novo espaço de luta, a “sociedade civil”. Nesta, a coerção é substituída pelo consenso e a força pela hegemonia. Gramsci vai então demonstrar que o socialismo só poderia vingar nas sociedades “ocidentais” (realidades onde a sociedade civil estivesse desenvolvida) pela via de uma longa “guerra de posição”, quando se chega ao poder por mecanismos de consentimento. É a partir daí e principalmente depois do fim do Stalinismo e a abertura para a leitura de autores heterodoxos do marxismo, que se começa a estabelecer a democracia como fator determinante na vitória do socialismo sobre o capitalismo.
Como dizem os comunistas italianos, “a socialização dos meios de produção deveria estar alinhada com a “socialização da política”.
Se em Lênin e Marx, a democracia é termo pouco utilizado, levando-se em conta as condições das lutas sociais de seu tempo (um Estado forte e violento contra pequenas vanguardas revolucionárias), com Gramsci e outros autores, a democracia passa a ser o caminho natural do socialismo, testemunhado em experiências interessantes como o Chile de Allende e com os partidos do chamado eixo “Eurocomunista”.
NOTA:
[1] Cadernos do cárcere, "Estatolatria". Nota redigida em abril de 1932.
CRÉDITOS:
Revisão textual: Regina Vilarinhos