segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Conhecendo Gramsci: TEXTO 1

Resolvi escrever três artigos em que tento introduzir aos interessados a obra do grande pensador italiano Antonio Gramsci. Serão publicados neste blog levando-se em conta as particularidades da elaboração teórica de sua obra. Neste primeiro artigo, pretendo fazer uma breve análise da história que percorreu a tradução e edição os textos carcerários de Gramsci. É fundamental compreendermos a dinâmica de todo este processo, caso queiramos entender verdadeiramente a cabeça de nosso autor.


Por Adelson Vidal Alves

TEXTO 1: As edições "Temática" e "Crítica"
           
              Como é de nosso conhecimento, Gramsci escreveu a maior parte de sua obra na maturidade, preso em cárcere fascista. Ele foi detido em 8 de novembro de 1926, ainda que tendo imunidade Parlamentar, e só teve permissão para escrever 3 anos depois, quando passou a receber regularmente cadernos escolares de capa dura, em sua maioria com o carimbo de controle do presídio.

            Foram ao todo 33 cadernos e mais de 2.500 páginas impressas, onde vários assuntos são abordados, tais como pedagogia, literatura, filosofia e, principalmente, política. Quatro destes cadernos são usados como exercício de tradução, tanto em alemão quanto em inglês, quando o italiano traduz textos de Marx e Goethe. Os outros 29 cadernos são dedicados a apontamentos de Gramsci que, como ele próprio descreve em carta à sua cunhada Tatiana Schuchut, tinham como intenção superar as temáticas do “dia-a-dia”, comum nos textos do período pré-carcerário, e transformarem-se em uma obra duradoura.

            Gramsci veio a falecer em 1937, dois anos depois de cessar seus escritos. Seu trabalho, contudo, ficou em poder da cunhada, que numerou os cadernos em algarismos romanos de I a XXXIII, sem a mínima preocupação com a redação cronológica. A partir daí, inicia-se um complexo processo de disputa pela herança literária de Gramsci. Nosso autor teria sugerido em vida entregar o material à sua família, mas a Internacional Comunista assumira a tarefa de editar as obras do pensador sardo e entregou esta empreitada a um velho amigo de Gramsci, Palmiro Togliatti. A família de Gramsci aceitou a proposta da IC. Porém, exigindo uma fotocópia dos originais.

            A primeira edição de Cadernos do cárcere, como ficaria conhecido o trabalho gramsciano no período da prisão, inicia-se em 1948, na Itália. Togliatti, a princípio, conhecia pouco dos escritos gramscianos, e logo depois de estudá-los, pode perceber uma grande diferença entre o posicionamento teórico heterodoxo de Gramsci e o marxismo vulgar adotado por Stalin. Togliatti, assim, prometeu rever com cuidado os documentos, o que de certa forma ainda hoje arranca desconfianças sobre sua tradução, que ficou conhecida como “Edição temática”.

            A edição de Togliatti, como nos sugere o título, caracterizou-se pela separação por temas dos apontamentos gramscianos. Devemos ressaltar que os escritos de Gramsci são divididos em duas partes: os chamados “cadernos miscelâneos” e os “cadernos especiais”. Nos primeiros, estavam os apontamentos diversificados de Gramsci, com títulos e descrições por vezes repetitivas, enquanto nos segundos, nosso autor teve uma preocupação maior com a sistematização e desenvolvimento de variados temas. Ele mesmo dividiu esses cadernos: os “miscelâneos” (1,2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 14, 15 e 17) e os “especiais” (10, 11, 12, 13, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28 e 19).

            A divisão por temas feita por Togliatti, de certa forma, facilita ao leitor a compreensão de uma obra tão fragmentada como a de Gramsci, mas perde caráter crítico ao sugerir uma homogeneidade histórica na elaboração dos escritos. Isto coloca cientificamente em xeque a contextualização adequada do pensamento do comunista italiano. Além do mais, o próprio tradutor evita assinar os textos, talvez pelo fato de temer um confronto com a vulgata marxista da IC.

            A “Edição temática” de Togliatti logo sofreu pesadas críticas dos estudiosos de Gramsci. Todavia, não se pode desconsiderar o esforço deste trabalho, sem o qual, talvez hoje nosso autor fosse lembrado apenas como um mártir na luta anti-fascista e não como um teórico brilhante e renovador da tradição marxista.

A edição Gerratana

            Um novo projeto de publicação das obras do cárcere começa por iniciativa do Instituto Gramsci, que deu a Valentina Gerratana, um competente pesquisador, a tarefa de reelaborar os escritos de Gramsci, partindo de uma definição mais clara e cronológica dos apontamentos. A “Edição crítica” ou “Edição Gerratana” como foi denominada a nova edição, é sem dúvida, uma publicação imprescindível para os novos estudos sobre o ordenamento teórico do pensamento gramsciano.

O trabalho só foi concluído em 1975, e é até hoje a base das diversas traduções dos Cadernos do cárcere. São mais de 2.400 páginas, divididas em quatro volumes e com direito a mais de 1.000 páginas dedicadas inteiramente à um aparato crítico, que inclui citação, história e definições mais claras sobre acontecimentos e autores que Gramsci cita. A edição Gerratana traz luz sob o pensamento de Gramsci na medida em que nos situa historicamente na construção de sua teoria.

Assim como a “temática”, a edição Gerratana já recebe críticas e propostas de reelaboração de novos projetos, que têm em vista inclusive a publicação dos vários exercícios de tradução, expostos em quatro cadernos.

O que nos interessa, a partir deste resumo rápido da história da publicação dos cadernos, é compreender o caráter complexo e fragmentário dos escritos gramscianos carcerários. Não se trata de um autor que publicou livros e apesar de sua clara intenção sistemática, sua obra nos chegou recortada pelas condições físicas e geográficas as quais foi obrigado a enfrentar. Sendo assim, entender o pensamento de Gramsci é algo que nos exige leitura e muito estudo, com a pena de defini-lo com colocações bizarras, se por acaso nos faltar empenho e metodologia na interpretação de sua obra.

No próximo artigo, iremos conhecer um pouco da recepção da obra gramsciana no Brasil e também a edição brasileira dos Cadernos.

Créditos:

Revisão textual: Regina Vilarinhos

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Ateismo cristão ou cristianismo ateu




Dom Helder Câmara acreditava em Deus e lutou em favor dos pobres.

Darcy Ribeiro NÃO acreditava em Deus e lutou em Favor dos pobres


Por Adelson Vidal Alves


Os filósofos de séculos passados que profetizaram o fim das religiões fracassaram em suas previsões. Em pleno século XXI, em meio aos significativos avanços na cibernética, física, astronomia e descobertas científicas, que explicam de forma convincente as origens e funcionamento do cosmos, ainda sim, milhões de pessoas modelam sua vida frente ao conjunto de regras morais e éticas organizadas por instituições religiosas.

Deus não só não desapareceu da vida humana, como aqueles que nele não creem vivem em total desconforto social quando declaram sua descrença. São chamados de loucos, desequilibrados e até endemoniados. Diante de tal impasse, alguns ateus buscaram várias formas de organização para defenderem seus direitos. É bem verdade que muitas destas organizações, como a ATEA, agem como se fossem uma igreja. Fazem proselitismo em outdoors colocados em ônibus e fiscalizam, de forma inquiridora, qualquer deslize de personalidade, que por puro vício de linguagem, associam crimes bárbaros à ausência de fé numa divindade.

Contudo, é legitimo a militância ateia na busca por cidadania, haja vista que a grande maioria das religiões condena à perdição eterna aqueles que negam a existência do divino. Na própria bíblia lemos, “Diz o néscio em seu coração: Não há Deus” (Salmos 14.1). “Quem crê e for batizado será salvo, quem não crê, porém, será condenado” (Marcos 16-16).

O Deus revelado por Jesus parece estar em confronto com a ideia fundamentalista de pena eterna, ainda mais movida por uma simples questão de crer ou não crer em uma força metafísica superior (obviamente se os textos bíblicos forem analisados por uma hermenêutica adequada).

Jesus nos revelou um Deus atuante na história, inserido nas contradições sociais e tomando sempre partido dos mais fracos, seja no episódio do êxodo, dos profetas que denunciam as injustiças, a igreja primitiva no Ato dos Apóstolos e, principalmente, na paixão e morte de Jesus, motivados por uma mensagem de libertação integral do ser humano.

Questionado sobre a salvação dos justos, Jesus disse:

Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes ver-me. Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? Quando te vimos forasteiro, e te acolhemos? ou nu, e te vestimos?  Quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos visitar-te? E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes. Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai- vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos, porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; era forasteiro, e não me acolhestes; estava nu, e não me vestistes; enfermo, e na prisão, e não me visitastes. Então também estes perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou forasteiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos? Ao que lhes responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixaste de fazer a um destes mais pequeninos, deixastes de o fazer a mim. E irão eles para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna. (Mateus 25 34-46)

Para Jesus, a salvação está diretamente ligada a sua relação com o outro. Perceba que Jesus centrou o seu discurso na atitude frente aos oprimidos da sociedade. Para ele, ser salvo tem como condição o compromisso de luta junto aos despossuídos da sociedade.

Gente como Darci Ribeiro, Herbert de Souza (O Betinho), Paulo Freire e tantos outros, se declararam publicamente ateus, mas na prática, seguiram aos passos de Jesus, inclusive sendo perseguidos por sua opção pelos pobres. Estariam eles no Inferno?

E quanto ao clero católico que apoiou ditaduras no Cone Sul, o bispo que excomungou um médico por este salvar a vida de uma mulher recorrendo ao inevitável aborto? E quanto ao afortunado Silas Malafaia, que persegue homossexuais? Estariam eles no céu?

De minha parte, tenho tentado professar a fé de um cristianismo ético, onde a salvação passa necessariamente pela práxis libertadora. Em resumo: Não acredito em cristianismo sem opção pela libertação dos pobres.

Créditos:

Revisão textual: Regina Vilarinhos

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O PT, o governo Lula e as transformações sociais no Brasil: Expectativas e Frustrações.


Por Adelson Vidal Alves


Introdução

                                    
A criação do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 1980, teve grande impacto na vida política brasileira. Não só porque surgiu no período de transição democrática, tendo uma ampla base social subalterna, mas, principalmente, por sua organização interna, bem diferente dos Partidos comunistas tradicionais, em plena crise, devido ao declínio da URSS.

O presente trabalho busca analisar a trajetória do PT e sua participação na vida nacional, indo desde os momentos de sua fundação até a sua chegada ao governo central em 2002, que se estendeu até o ano de 2010. Procura, assim, entender suas metamorfoses programáticas durante sua história e o seu real significado no período governamental citado.

Nossa intenção é averiguar o nível de transformações sociais que o país passou durante a gestão lulista e analisá-la junto à dinâmica da vida partidária petista.

                                                                      

RESUMO


O presente artigo irá fazer uma breve análise da trajetória do Partido dos Trabalhadores, o PT, desde os primeiros passos de sua fundação até sua chegada ao poder. Fará uma avaliação das mutações ideológicas do partido e seu impacto no período de 2002 a 2010, quando Lula chegou ao governo central do país. Buscamos, assim, entender o verdadeiro nível de transformação estrutural na sociedade brasileira, levando em conta as expectativas de mudanças colocadas pela vitória de 2002. Para isso, recorremos a documentos oficiais do partido no período de sua fundação até os tempos pesquisados, com o fim de comparação entre as mudanças sofridas nos vários encontros e congressos realizados. Recorremos também aos autores que trataram do assunto, assim como reportagens e artigos relacionados.


Palavras Chave: Partido dos Trabalhadores; Socialismo; transformação social; neoliberalismo; eleições.


1. As Metamorfoses do PT

           
Desde sua fundação, quando se configurou como uma alternativa anticapitalista e seu comportamento político mantinha ligações estreitas com o movimento de massas, o PT sofreu profundas modificações até a eleição de sua personalidade maior, o sindicalista Luís Inácio Lula da Silva, à Presidência da República. Tal metamorfose se confirmou na governança petista, na qual prevaleceu uma ambiguidade programática combinada com uma política de alianças heterogênea e com critérios duvidosos. Mas, este projeto se concretizou durante os anos anteriores, no qual um pequeno grupo de profissionais tomou conta da máquina partidária e elegeu como meta principal, a eleição ao executivo central a qualquer custo. Nas palavras do historiador Lincoln de Abreu Penna:


As sucessivas derrotas levaram os dirigentes do partido de Lula, em conluio com os marqueteiros de campanha, a cogitarem uma estratégia de pudesse assegurar uma vitória eleitoral segura. A ideia prosperou e o resultado acabou por consagrar esse projeto. Todavia, o custo político da vitória tem sido alto demais, pois desqualificou ideologicamente o PT, ceifou o partido de quadros mais combativos e históricos, e ainda banalizou a política de atrair novos adeptos para sua base de apoio. (PENNA, 2006).

                                       
Como afirmamos anteriormente, o caminho para consolidação de tal projeto se deu no bojo de uma profunda mutação programática dentro do partido, que pretendemos analisar agora.


1.1 Do Manifesto de fundação à disputa eleitoral de 1989
           

Na virada da década de 1970 para 80, o Brasil vivia um momento de ascensão e mobilização das lutas trabalhistas. Com epicentro no ABC paulista, os trabalhadores organizavam greves e reinvindicações em todo país, vindo a ser brutalmente combatidos pelos aparatos repressores do governo.

A resistência dos operários construiu dialeticamente as bases objetivas de uma consciência coletiva, que lhe sugeriam a organização de instrumentos de luta que representassem as demandas das classes oprimidas. Foi aí que surgiu, no plano das idéias, o projeto embrionário de um partido político.

Já no ano de 1979, um amplo debate foi construído entre o movimento sindical, os intelectuais de esquerda e setores populares ligados à igreja católica que, através de vários documentos, materializavam uma proposta de organização para o novo partido. Nos textos, percebe-se uma tendência a cobrar mais democracia no país, seja ela política, social, econômica e cultural. Neles, não continha expressamente a palavra “socialismo”, nem deixava claro que tipo de ordenamento social se pretendia organizar no Brasil, motivo pelo qual ainda hoje integrantes do PT que estão no governo neguem sumariamente o caráter socialista do projeto original do partido, justificados talvez pelo fato de quererem explicar a inflexão político-partidária dos últimos anos.

Mas é fato, contudo, que o partido deveria ter um caráter classista, a partir dos operários fabris, mas que englobassem também os assalariados.

O documento de 1980, intitulado “Manifesto de Fundação”, é um dos mais importantes para se entender as primeiras intenções desta nova organização política. Nele, se expressa abertamente uma oposição ao modo de produção capitalista, visto como um sistema que beneficia apenas uma parcela minoritária da sociedade brasileira. Como vemos em um dos seus trechos: “O PT nasce da decisão dos explorados de lutar contra um sistema econômico e político que não pode resolver os seus problemas, pois só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados.”

O documento não apresenta apenas os motivos que levaram à necessidade de organização de um Partido dos Trabalhadores, mas apresenta também, ainda que de forma genérica, os objetivos centrais da organização política.

O Partido dos trabalhadores nasce da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da economia, social e política. Nasce, portanto, da vontade de emancipação das massas populares. Os trabalhadores sabem que a liberdade nunca será dada de presente, mas será obra de seu próprio esforço coletivo. [1]

A defesa aberta da construção de um novo governo dos trabalhadores, a partir de ações dos próprios trabalhadores, reflete certa influência marxista nos elaboradores do documento, que por várias vezes e em outras ocasiões se utilizavam de conceitos elaborados pelo pensador alemão. Todavia, não seria correto admitirmos que o PT em suas origens fosse um partido marxista. Sua composição heterogênea, que reunia católicos e socialdemocratas, deixava em aberta a questão de sua principal orientação teórica. Valia, neste momento, a convicção de uma luta coletiva dos trabalhadores contra a exploração e a ditadura, e por uma nova ordem social.
           
Mas, como alcançar este objetivo? De que estratégia se utilizar?
           
Há, no primeiro momento, quem defendesse a “pureza” política do partido a partir do abstencionismo eleitoral. Confiando única e exclusivamente na mobilização de rua. O próprio Lula chegou a afirmar que jamais se candidataria a um cargo eletivo.

Entretanto, o manifesto de fundação já aponta para uma correta articulação entre as mobilizações de massa e a participação eleitoral, ainda que a última subordinada à primeira:

O PT afirma seu compromisso com a democracia plena exercida diretamente pelas massas. Neste sentido, proclama que sua participação em eleições e suas atividades parlamentares se subordinarão ao objetivo de organizar as massas exploradas e suas lutas. [2]

Logo após sua fundação, concretizada em 1980, o Partido dos Trabalhadores irá seguir um caminho de avanços e recuos em seus objetivos programáticos. No seu primeiro encontro nacional, realizado em 1981, o principal líder da nova sigla faz um discurso elucidativo, usando de forma explícita a palavra “socialismo”, mesmo que ainda em concepções construtivas.

Lula afirma o caminho para a sociedade socialista e uma meta do projeto petista para a sociedade brasileira:

Os trabalhadores são os maiores explorados da sociedade atual. Por isso, sentimos na própria carne e queremos com todas as forças, uma sociedade que, como diz nosso programa, terá que ser uma sociedade sem exploradores. Que sociedade é essa senão a sociedade socialista?[3]

A confirmação do socialismo como pretensão a ser alcançada se trata de um momento importante para a forma de atuação de seus membros. Volto a repetir que tal socialismo ainda não tinha uma definição clara, vindo a se fragmentar entre as várias correntes que compunham o PT. Todavia, tendo a unidade garantida na forte oposição ao sistema capitalista e na luta por uma sociedade sem explorados ou exploradores, expressos no primeiro artigo de seu estatuto.

A meta estava estabelecida, mas sofreu mudanças estratégicas no decorrer dos anos. Momento significativo foram os encontros realizados às vésperas da eleição presidencial no ano de 1989, no qual se construiu uma nova tática de chegada ao poder que retirava por completo a ideia da tomada do poder num lapso curto de tempo, sendo forçada uma batalha gradual pela transformação do sistema através de conquistas lentas e moleculares por dentro da ordem democrática. A meu ver, prevalece nestes documentos uma percepção de um fenômeno conhecido por “ampliação do Estado”, definição teórica do pensador italiano Antonio Gramsci, teórico influente na vida partidária deste momento, principalmente entre os intelectuais.

Para Gramsci, a observação de Marx que o Estado não passaria de um “comitê executivo das classes dominantes” estaria superada, já que a luta das classes subalternas obrigou o Estado a se expandir e se tornar mais fértil para conquistas graduais dessas mesmas classes. Para isso, se utiliza de uma fórmula que tenta demonstrar que o poder exercido pelas classes dominantes não dependem mais apenas do uso da força, mas sim de uma legitimação ideológica. Neste sentido, propõe o pensador sardo, é preciso conquistar hegemonia ideológica para se manter ou chegar ao poder. Gramsci formula um novo conceito de sociedade civil, segundo o qual abrigaria vários organismos de livre associação, responsáveis pela difusão da ideologia e portadores materiais de uma luta pela hegemonia na visão de mundo. Assim escreve Gramsci:


Este estudo também leva a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um dado momento), e não como um equilíbrio de sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobe toda a sociedade nacional, exercida através de organizações privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc). (COUTINHO (org); 2011)

           
Desta forma, parece-me que os elementos teóricos de Gramsci começam a nortear a concepção estratégica do partido, apesar, é claro, não se tratar de uma conversão integral do partido às categorias elaboradas pelo comunista italiano, a ponto de definir o PT como um partido gramsciano, até porque o conceito de “aparelhos ideológicos” às vezes presentes nos textos se aproxima mais de Althusser do que de Gramsci. Contudo, não podemos deixar de perceber que parte de suas resoluções apresentam uma identificação clara com o que apresentava Gramsci em suas notas carcerárias. Como fica claro na resolução do partido, datada de 1989:

Do nosso ponto de vista, nossa intenção, nossa vontade política, nossos propósitos programáticos, vão no sentido de conquistar o poder através da vontade, da mobilização e da luta da maioria, e não da tomada o poder por meio de um golpe de mão, de um putsch de vanguarda. Queremos o poder e a construção do socialismo através da vitória sobre a burguesia e seus aparelhos ideológicos de dominação. Com este objetivo estamos preparando o partido, estamos construindo uma hegemonia política, social e ideológica, estamos acumulando forças para respaldar nosso projeto. [4]


As categorias pela qual o PT irá trabalhar em sua estratégia eleitoral em 1989 apontam para um caminho de vitória nas eleições como forma de ganhar mais um ponto de apoio na conquista gradual do socialismo, entendida como uma luta molecular por hegemonia de Estado. Para isso, formulou-se uma estratégia que ficou conhecida como “Programa Democrático Popular”.

O projeto formulado pela “Frente Brasil Popular” que reunia a maior parte da esquerda social e política do Brasil, tinha no seu centro um programa de reformas estruturais que erradicassem a pobreza, distribuisse renda, incentivasse novas formas de organização econômica, assim como apoio aos movimentos sociais e a elevação da consciência do povo.

As propostas avançadas da candidatura petista de Luis Inácio Lula da Silva não se tratavam mais de um sonho impossível, mas uma realidade palpável, consequência da profunda crise econômica e política do Governo Sarney, além do crescimento eleitoral do PT e uma ascensão das lutas populares.

Com a possibilidade real de uma vitória eleitoral das forças populares, o Brasil viveu no ano de 1989 uma polarização política entre os agentes que pensavam avanços democráticos no país e as classes conservadoras, o que ficou visível no segundo turno das eleições.


2 – As eleições de 1989
                  
                  
O PT e seus aliados entraram no processo eleitoral com reais chances de chegarem ao poder central do país. Contavam, para tanto, com a crise profunda que se encontrava o Governo Sarney, imerso em denúncias de corrupção e um quadro inflacionário alarmante. Entretanto, as transformações na conjuntura mundial colocavam para o PT e seu programa desafios a serem enfrentados, na medida em que em todo o mundo se percebia o deslocamento de um contexto bipolar para um unipolar, com a vitória do capitalismo transnacional e seu discurso modernizante, combatidos pelo PT como sendo a causa principal das extremas desigualdades sociais e regionais do país.

No primeiro turno, as candidaturas se fracionaram. No campo político de centro, estava o PMDB de Ulisses Guimarães e o PSDB de Mario Covas; mais à direita, o PFL de Aureliano Chaves e o PDS de Paulo Maluf; à esquerda, o PDT de Brizola e o PT de Lula, além do enigma Fernando Collor de Mello, candidato do pequeno PRN.

Iniciada a campanha, foram colocadas em pauta as grandes questões da jovem democracia brasileira, além de propostas para superar os problemas econômicos e sociais, por que atravessava o país. O PT centrou fogo nas estruturas brasileiras e na necessidade de reformas que diminuíssem as disparidades sociais do Brasil. Em sua estratégia eleitoral, buscava escancarar a realidade nua e crua da miséria brasileira e apontava a necessidade de mudança no sistema econômico, ainda que talvez por necessidade estratégica evitasse falar de socialismo, já que no mundo todo via se desmoronar a experiência Stalinista do Leste Europeu.

Do outro lado, o jovem Fernando Collor de Mello explora o oposto do Partido dos Trabalhadores, fala de modernização do país, da potencialidade econômica do povo brasileiro, que poderia, assim como nos países ricos, desfrutar de um padrão de consumo moderno.

Fernando Collor contou com o apoio da mídia e de seu aparato de marketing para pintar uma candidatura moderna, segura e competente e que poderia colocar o Brasil e o povo Brasileiro num “paraíso” para se viver. Seja como for, o discurso de Collor emplacou e a estratégia do PT aos poucos ia se perdendo em seu discurso “realista” da miséria social, não seduzindo o eleitor, que preferiu o sonho “modernizador” e a esperança de um dia viver como os ricaços das novelas da Globo, simbolizados na candidatura de Collor.

O PT insistia erroneamente em uma estética da miséria, mostrando desigualdades, pobreza, exploração, em suma tudo que não deveria ser ou existir. Dramaticamente esquecia-se da máxima de um notório especialista em povo, Joãozinho Trinta: “Quem gosta de miséria é intelectual”. Collor, ao contrário, oferecia aventuras e riqueza, não como apanágio pessoal, mas sim como promessa. (SILVA; 1990).

                  
O resultado do primeiro turno levaria Lula ao segundo com 16% dos votos, contra 28% de Collor. Até 17 de dezembro, foi montado um mutirão progressista contra a candidatura de Collor. Trabalhistas, comunistas, socialistas, socialdemocratas e movimentos populares se organizaram em uma frente de esquerda contra a candidatura de Collor, este que capturou os setores conservadores e reacionários da sociedade brasileira.
                  
A polarização da disputa se refletia no discurso forte de reformulação da prática política do Brasil contra a miséria e a exploração, e outro discurso, que buscava um novo padrão de vida brasileiro conservando a ordem estabelecida. Tal discurso foi bem recebido pelas elites e setores mais conservadores da classe média, e se concretizou com um uso difamador da vida pessoal da candidatura Lula. Com oposição explícita da mídia, especialmente a Rede Globo, o candidato Lula foi pintado como alguém despreparado para o cargo e disposto apenas a distribuir a miséria do Brasil.

Por motivos que não nos cabe aqui analisar, Collor sai vitorioso com 37,8% dos votos, contra 31% do candidato petista. Deste momento em diante, o PT vai rever por completo suas táticas eleitorais e inaugurar um novo ciclo em sua vida partidária.
                  

3 – A inflexão moderada da década de 90 até a eleição de Lula em 2002

A derrota eleitoral de 1989 foi sem dúvida um divisor de águas nas ambições políticas do PT e em sua estratégia de chegada ao poder. O partido iniciou novas reflexões sobre a necessidade de rever as possibilidades de avanços e recuos nas pretensões partidárias, pensadas a partir de uma realidade que caminhava em direção desfavorável a avanços políticos dos setores de esquerda. Neste momento amplia-se o debate quanto ao conteúdo programático e a política de alianças.

Dois fatores conjunturais da maior importância incidem nos rumos do PT a partir de 1990: A derrota eleitoral para Collor e o desmonte do bloco socialista a partir da crise da URSS. O primeiro, num plano mais imediato, abre uma longa reflexão sobre os limites eleitorais atingidos e a suposta impossibilidade de ir além deste limite com a atual radicalidade programática e uma política de alianças restrita ao campo popular (assalariados e classes médias); o segundo fenômeno coloca o partido na defensiva quanto a suas afirmações estratégicas socialistas. (IASI; 2006)

Passam a ser rotineiros os questionamentos quanto aos rumos a serem tomados daí em diante, tendo sempre em mente as lições da derrota eleitoral de 1989 e ao mesmo tempo a mudança na conjuntura mundial, que caminha mais rapidamente para rumos conservadores, o que significou uma dura derrota para a esquerda no campo ideológico. Passa a ser desafio do PT combinar uma ação que o insira em novos setores sociais, ao mesmo tempo em que não perca sua energia original de crítica frontal ao sistema capitalista. Como observou Chico Alencar:

Aos 13 anos de idade, o PT vive uma crise de crescimento rumo a maturidade. Corre o risco de ficar “bem comportado’, com educados hábitos social democratas, sem voltar jamais a “cair na vida”. Corre, por outro lado, o risco de ficar “autista”, ensimesmado, fazendo panfletos raivosos no velho mimeógrafo ou berrando no megafone a pilha a aproximação da “tomada do Palácio de Inverno. (ALENCAR; 1994)

O temor do hoje deputado federal pelo PSOL, Chico Alencar, fazia muito sentido, comprovado pelo fato de, já em meados da década de 1990, o PT mostrar mutações profundas não só em sua proposta de governo como também em sua vida interna, o que comprovou de fato a conversão do Partido à ordem estabelecida, chegando ao ponto de tirar dos seus caminhos todos aqueles que insistiam no retorno programático do partido a suas bases de formação.

Mas o que importa é o fato de que a derrota foi importantíssima para que o PT escolhesse de vez o caminho da integração à ordem estabelecida, até mesmo expulsando as tendências que não concordavam com o aggiornamento. (SECCO; 2011)
                                                                              
                  
Os encontros que seguiram, assim como o I Congresso realizado em 1991, ainda deixavam resíduos de uma utopia socialista, mesmo que construído sob os pilares de um aprofundamento da democracia, com crítica ferrenha à burocracia do modelo soviético. Em geral, se construía um consenso em torno da necessidade de ampliar as alianças como forma de se conseguir maioria e uma mínima possibilidade de governabilidade. Tal constatação norteou as ações do Partido nas eleições presidenciais de 1994 e 1998.

As mudanças ocorridas no interior do partido não se davam apenas na política de aliança, mas também na política de finanças. O cientista político César Benjamin chegou a denunciar, já em 1994, a presença de caixa dois de campanha, e, segundo seu relato, teria deixado o congresso debaixo de agressões. O acontecimento demonstrava não só o recuo no rigor ético do financiamento de campanha, como já consolidava um núcleo duro de burocratas que irão conduzir o partido com mão de ferro até a conclusão de seu principal propósito, a eleição de Lula à Presidente da República. Nas palavras do intelectual fundador do PT:

Fui embora depois da campanha de 1994, quando vi que o ovo da serpente estava incubado. De lá para cá, tudo piorou, com a ascensão fulminante dos Delúbios e a marginalização das Heloísas. Aquelas três características essenciais do nosso projeto desapareceram completamente da vida e do imaginário do PT. Por isso, o partido está morrendo. [5]


O rebaixamento programático, a flexibilização nas alianças, a mudança de paradigma na ética financeira dos recursos de campanha e a utilização do marketing eleitoral como ferramenta de construção de discursos, marcou a virada de um partido militante para um partido profissionalizado. Todavia, as concessões não foram capazes de lograr êxito eleitoral na Presidência da República, apesar do aumento da participação petista em governos municipais e estaduais.
                  
A crise da década de 1990, com direito a impeachment, desembocou numa opção moderada, representada pela ascensão à presidência do ex-ministro da Fazenda do breve governo Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, e que lançou as bases da estabilidade econômica e do controle inflacionário. Tanto em 1994 quanto em 1998, FHC venceu já no primeiro turno, fazendo com que a cúpula petista de uma vez por todas entrasse de cabeça no jogo mercadológico das eleições. Daí em diante, o horizonte socialista desaparece por completo, e enfim, o PT começa a se preparar para subir as rampas do planalto, o que acontecerá no ano de 2002.

4 – O governo Lula
                  
O continente latino-americano pode ser considerado o laboratório das políticas neoliberais. Entre o final da década de 1980 e início da de 90, emergiram candidaturas vitoriosas de presidentes identificados com as teses do consenso de Washington, no qual prevalecia cortes de gastos nas áreas sociais, privatização dos serviços públicos, austeridade fiscal, juros altos, flexibilização das leis trabalhistas e desregulamentação econômica. O resultado previsível, confirmado pela profunda crise do continente, abriu espaços para alternativas ao modelo neoliberal, que na prática produziu miséria, violência e concentração de renda.

Em 2002, o Brasil viveu um momento ímpar em sua história. A crise neoliberal permitiu que a candidatura petista de Lula ganhasse força nos setores médios e populares, sufocados pela crise econômica do país. Parecia que desta vez seria impossível impedir a vitória de Lula ao governo central do país.

Contudo, as metamorfoses petistas, a conjuntura de refluxo das lutas sociais e a busca por uma aliança mais ampla, demonstravam que o presidenciável petista já não era mais o mesmo das últimas eleições. Com o fim de angariar apoio na burguesia produtiva, José Alencar, empresário do ramo têxtil, foi escolhido como vice na chapa. Além do mais, a cerca de três meses da eleição, Lula apresenta à nação a “Carta ao Povo Brasileiro”, na qual garantia o cumprimento dos contratos da ortodoxia econômica e garantia assim a tranquilidade dos investidores financeiros. Lê-se no documento:
Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade. Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação. [6]
                  
A carta sinaliza para uma profunda inflexão programática, confirmada já nos primeiros anos de seu governo. Após vencer José Serra (PSDB) no segundo turno das eleições, o novo governo consolidou a política econômica ortodoxa ao nomear para o Banco Central o banqueiro Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Boston e deputado pelo PSDB-GO. A desculpa do governo seria de que se fazia necessário evitar boicotes e desestabilizações em seus primeiros momentos. Mais tarde, os rumos da economia confirmavam a opção definitiva e conservadora da política fiscal e o início de uma era marcada por contradições, crises e transformações no perfil ideológico de vários agentes políticos. Vejamos brevemente alguns pontos que demonstram a mudança de perfil programático do governo petista.

4.1 – Reforma da Previdência e Política Econômica

A nomeação de um intelectual orgânico da burguesia financeira para o Banco Central, assim como a entrega do Ministério da Fazenda à um político petista em alinhamento com a ortodoxia econômica, deixou claro o prosseguimento das linhas liberais da economia. A aliança estratégica com a burguesia produtiva tinha como finalidade a quebra da hegemonia financeira e a construção de um projeto nacional de desenvolvimento voltado para o mercado interno, a geração de emprego e distribuição de renda.

No decorrer dos anos, contudo, consolidou-se uma política de juros altos e desregulamentação fiscal, o que reafirmou a burguesia financeira como fração social hegemônica no bloco de poder.

E esta é a primeira grande crítica que o governo merece da esquerda: Não ter rompido com a hegemonia do capital financeiro em sua modalidade especulativa, mas, ao contrário, ter lhe dado continuidade e consolidado de fato a independência, do Banco Central, expressão política e institucional dessa hegemonia. (SADER; 2009)
                                                                                                
O prosseguimento da Política Econômica neoliberal foi carro chefe de um governo que, como disse o sociólogo Chico de Oliveira, se aproximava muito mais de um terceiro mandato de FHC do que de uma ruptura real com o modelo vigente.

Outro aspecto que confirma a conversão do governo Lula a administração da ordem, ao invés de uma ruptura é a proposta de uma reforma da Previdência Social no ano de 2003, que em sua essência representava os mesmos parâmetros apresentados por seu antecessor e que só não logrou êxito naquele momento devido à oposição do PT e dos movimentos sociais.

A reforma da previdência do governo petista atendia diretamente aos interesses do mercado, na contramão do que deveria ser uma ampliação dos benefícios, proposta histórica do PT. Na palavra de um dos fundadores do partido:

O objetivo primordial da reforma da Previdência é de caráter fiscalista. Ela não está preocupada em ampliar os marcos da seguridade social, mas em restringi-la com o objetivo de fazer caixa. Em segundo lugar, há um objetivo mais sombrio, que é o de inventar os fundos de previdência complementar para atender àqueles que têm salários mais altos que os limites estabelecidos pela emenda constitucional. Isso significa um mercado riquíssimo de seguros privados. Algumas simulações mostram que, até 2010, esses fundos de Previdência, a partir da reforma, podem chegar a R$ 670 bilhões. Aos preços de hoje, esse valor corresponderia a quase 50% do PIB brasileiro. Se somarmos todas as privatizações de empresas estatais que foram feitas ao longo dos últimos dez anos, não dá nem um terço desses R$ 670 bilhões. Portanto, o que se esconde por trás da Reforma da Previdência são os altos negócios. E altos negócios, no sistema capitalista, não se fazem sem negociata. [7]
           
As contradições eram tantas, que na votação da referida reforma quatro deputados do partido votaram contra, seguindo as diretrizes programáticas da legenda. Tamanha coerência levou à expulsão destes parlamentares, que mais tarde viriam a fundar outro partido, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Os primeiros anos do governo Lula apontavam para uma mudança de rumos nas propostas originárias e a consolidação de uma diretriz governamental conservadora e autoritária, que mais tarde seriam referendadas por outras ações na mesma linha de continuação do neoliberalismo.
               
4.2 – Reforma Sindical e Trabalhista

Outra questão significativa envolvendo o transformismo petista são as chamadas Reformas Sindical e Trabalhista do Governo Lula. Já nos anos de intenso neoliberalismo brasileiro, Collor e FHC tentaram desesperadamente flexibilizar a legislação trabalhista, e só não conseguiram devido à resistência firme do PT e da CUT. No poder, a cúpula de ambos, através do estranho “Fórum Nacional do Trabalho”, apoiou as propostas governistas para uma nova legislação sindical e trabalhista para o Brasil, em essência com forte influência neoliberal.

A reforma trabalhista, elaborada pelo Fórum Nacional do Trabalho, com representantes dos ''trabalhadores, empresários e governo'', todos escolhidos pelo governo do PT, é antípoda daquilo que era defendido pela CUT e pelo PT, durante os anos 80. Numa síntese, é a negação da autonomia, da liberdade e da independência sindicais. Dividida em duas partes, o desmonte começa pela reforma sindical. Depois viria a reforma trabalhista, na onda da desconstrução global. Ela tem pelo menos três pontos nefastos. (ANTUNES; 2004).

A idéia governista contrariava toda a história do ex-sindicalista Lula, que combateu firmemente o “Sindicalismo de Estado” e agora usava de uma estratégia de desmonte dos sindicatos como forma de quebrar a espinha dorsal de resistência dos trabalhadores, com o fim de retirar direitos sociais.

4.3 – Reforma Agrária

Uma das questões sociais mais urgentes do Brasil contemporâneo permanece sendo nossa estrutura fundiária. A ocupação colonial do Brasil, através das capitanias hereditárias, deu o primeiro ponta-pé de uma concentração de terras alarmantes e que ainda hoje nos lega gravíssimos problemas sociais. Entre todas as Américas, o Brasil está entre os poucos países que ainda não mexeram em sua realidade fundiária. De acordo com o IBGE, enquanto os estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total ocupada pelos estabelecimentos rurais, a área ocupada pelos estabelecimentos de mais de 1.000 hectares concentra mais de 43% da área total.

O PT sempre se ocupou em defender uma Reforma Agrária que eliminasse o latifúndio brasileiro e uma política agrícola centrada basicamente na produção de alimentos para o mercado interno, através de incentivo às pequenas propriedades produtivas que pudessem gerar renda no campo.

No Governo Lula, a situação permaneceu a mesma e o aliado preferencial do governo continuou sendo o agronegócio e suas exportações, assim como a manutenção dos grandes latifúndios. As razões pelas quais fizeram o governo petista recuar em suas propostas originais são expostas pelo principal líder do Movimento de Trabalhadores sem Terra, o MST:

Agora, o próprio governo assume que quer ser apenas um governo de composição onde convivam forças de direita, centro e esquerda. Onde convivam representações da classe dominantes e das classes trabalhadoras. E o presidente se apressou a se assumir como centro, como fez questão de explicar, que passara dos 60 anos e era necessário mudar de posição política.[8]

A Reforma Agrária, durante os oito anos de Governo Lula, ficou paralisada. Os movimentos sociais do campo denunciaram uma política centrada unicamente em assentamentos, sem apoio técnico ou mesmo uma ação concentrada na democratização da terra. Lula virava, assim, mais um capítulo de nossa história deixando intacta a injustiça social do campo.



Conclusão
              
Concluímos que o Partido dos Trabalhadores constituiu uma interessante experiência de luta social das classes subalternas, nascendo das demandas reais de construção de uma plena democracia e absorvendo os setores da sociedade interessados em transformações estruturais na realidade brasileira.

A trajetória do partido, contudo, sofreu profundas modificações em seu posicionamento ideológico e programático, o que se tornou visível com a mudança de seu perfil de organização interna, o rebaixamento de seu programa, assim como o abandono de formas de atuação mais democráticas. A criação de um núcleo dirigente profissionalizado com interesses exclusivos de cunho eleitoral abafou as relações da legenda com suas bases e os movimentos sociais e colocou o PT na trilha de um pragmatismo que foi variando à medida que a própria dinâmica da luta de classes ia se transformando em refluxo das lutas sociais.

Com as metamorfoses do partido e as concessões programáticas e de aliança, o governo eleito em 2002 aplicou uma política sem grandes alterações nas estruturas da sociedade brasileira, cada vez mais se alinhando aos grupos dominantes e se distanciado de ações que significassem de fato mudanças substanciais na realidade brasileira. O governo Lula (2002-2010) se caracterizou por mudanças superficiais na prática política, mantendo, contudo, a ausência de uma ousadia que enfrentasse estruturalmente as injustiças históricas do Brasil.


REFERÊNCIAS

ALENCAR, Chico; SADER, Emir (org) Ideias para uma alternativa de esquerda. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1994.

ANTUNES, Ricardo. Recusar a reforma sindical. Disponível em: http://www.galizacig.com/actualidade/200412/correio_recusar_a_reforma_sindical.htm Acesso em: 21/10/2011.

BENJAMIN, César Benjamin. O apodrecimento do PT e seu Governo. Disponível em: http://resistir.info/brasil/cesar_folha_28dez03.html Acesso em: 21/10/2011.

COUTINHO, Carlos Nelson. (org) O leitor de Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2011.

IASI, Mauro. As metamorfoses da consciência de classe: O PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular; 2006.

OLIVEIRA, Chico. Francisco de Oliveira vincula reforma a interesses do mercado. Disponível em: http://www.cefetsp.br/edu/eso/lutasindical/chicooliveiraref.html. Acesso em: 21/10/2011.

PENNA, Lincoln de Abreu. A presidência Lula: Passos e Tropeços. Rio de Janeiro: Imprimatur; 2006.

SADER, Emir. A nova toupeira. São Paulo: Boitempo; 2009.

SECCO, Lincoln. Entrevista a Revista Caros Amigos nº 174/2011    

SILVA, Francisco Carlos Teixeira; LINHARES, Maria Yeda de (org).  História Geral do Brasil. Rio de janeiro: Campus; 1990.

NOTAS:

[1]Partido dos Trabalhadores -  Manifesto de Fundação (1980) -  Resoluções; pag.  65-66.
[2] Idem, pag. 66.
[3] Luiz Inácio Lula da Silva – Discurso na Iª Convenção Nacional do PT; agosto 1981, Resoluções cit. pag 107.
[4] Partido dos Trabalhadores – VI Encontro Nacional, Resoluções. 1989; pág 402.
[6] Carta ao Povo Brasileiro. Silva, Luiz Inácio Lula da, in http://www2.fpa.org.br/carta-ao-povo-brasileiro-por-luiz-inacio-lula-da-silva
[7] Entrevista de Francisco de Oliveira, in htpp://www.cetesp.br/edu/eso/ lutasindical/chicooliveiraref.html
[8] Stédille, João Pedro. Revista Caros Amigos; Fev 2007.

CRÉDITOS:

Revisão textual: Regina Vilarinhos


sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Raça e racismo


 Por Adelson Vidal Alves
Aqui existem raças

Aqui NÃO existem raças.

             Participando ano passado de um seminário sobre racismo, vi uma jovem na platéia levantar-se, dirigir-se a mim e afirmar: “Na escravidão os negros sofreram muito racismo”. A afirmação da moça faz parte de um imaginário hegemônico dentro do senso comum, segundo o qual a história da escravidão seria a história da discriminação de uma raça sobre outra.
            Mesmo com um significativo consenso entre historiadores e cientistas sociais quanto à natureza econômica dos interesses escravocratas, ainda sim, militantes do movimento negro organizam cursinhos e ensinam aos alunos uma história racializada, jogando o fardo da escravidão nas costas da “raça” branca e seus descendentes.
            Os negros trazidos para América como escravos, chegavam aqui entre acordos das elites, que envolviam traficantes e governantes de pele negra. Mesmo o modelo jurídico escravocrata, abria brechas para que um negro pudesse obter outro negro como escravo, assim que conseguisse sua alforria.
            O Racismo, assim, é um fenômeno moderno, particularmente do século XIX. Neste momento, as potências européias iniciam suas conquistas coloniais na África e Ásia, e necessitavam, portanto de um apoio da opinião pública de seus respectivos paises. Motivo pelo qual mobilizaram centenas de cientistas, médicos e antropólogos, que passaram a classificar os nativos de acordo com a raça, distribuindo, a partir desta classificação, direitos e deveres.
            A divisão racial entre os seres humanos remonta tempos mais antigos. Contudo, as raças eram vistas apenas como recortes estáticos da natureza humana. Apenas com o darwinismo, criou-se uma ideia de que algumas “raças” evoluíram e outras não. Montando-se assim uma hierarquia racial.
            As rotulações dadas pelos europeus modificaram por completo o modelo social africano, que antes se organizava a partir de clãs, e, após a chegada dos europeus, passaram a se ver em tribos étnicas. E como se percebe ainda nos dias de hoje, as rivalidades entre os vários grupos diferentes são causas de genocídios e segregação.
            O racismo, então, é uma ideologia criada como legitimação do mercantilismo do século XIX. Sua invenção contou com apoio “científico”, onde cientistas escorados num pseudodarwinismo montavam pesquisas demonstrando a inferioridade moral e intelectual de várias raças.
            Foi somente na virada do século XX para XXI, que as ciências naturais desenvolveram mecanismos avançados no campo da genética, que demonstraram de forma factual que raças biológicas entre os humanos não existem, são seres “monotipicos”. Toda forma de ideologia e políticas governamentais sustentadas na ideia de raça, como a Lei Jim Crow nos EUA, já não tinham mais em que se apoiar, pelo menos no que diz respeito à objetividade cientifica.
            Seria assim o fim do racismo e das políticas racialistas? Infelizmente, não.
            Sem nenhum amparo nas ciências biológicas, a ideia de raça só sobreviveria a partir de uma profunda reengenharia política. Tal malabarismo ideológico viria, entretanto, não mais de forma acentuada por parte das elites racistas, mas sim de um movimento negro organizado, que se firmou em reivindicações de reparação histórica por parte do Estado em relação aos negros.
            A chave para a sobrevivência da “raça” está no que chamamos de “multiculturalismo”. Os novos inventores da raça já não medem crânios e nem recorrem a mapeamentos genéticos para suas comprovações raciais. A nova estratégia consiste em ligar automaticamente uma raça a um determinado padrão de cultura.
            Os negros, desta forma, estão diretamente ligados às manifestações culturais conectadas com a tradição africana. Ao contrário da dinâmica que caracteriza a cultura humana, o multiculturalismo, joga manifestações sociais complexas e heterogêneas na conta do gene individual. Negros, brancos e pardos estariam, assim, obrigatoriamente ligados a uma determinada cultura. 
            O movimento negro moderno, encampa a idéia multicultural, a fim de inventar uma identidade, e a partir dela manipular a história para fins corporativos.
            As políticas racialistas não incluem socialmente, muito menos combatem o racismo. A insistência da raça por meio de movimentos corporativistas tem, na verdade, como fim a construção de um grupo homogêneo organizado em busca de leis de privilégio. O que, infelizmente, às vezes se traduz em votos para candidatos e partidos políticos.
            A sociedade só poderá superar as máculas do racismo, quando superar o conceito de raça. Afinal, as raças são invenções do racismo e não o inverso.

CRÉDITOS:

Revisão textual: Regina Vilarinhos